Com “Passione”, Sílvio de Abreu tenta fugir do “italianês”

Início de novela, especialmente no horário nobre, revela novos galãs, traz inspirações para a moda das ruas e acrescenta novas expressões ao vocabulário usado pelas pessoas no dia-a-dia. Foi assim com o “are baba” de “Caminho das Índias”, o “ishalá” de “O Clone” e por aí vai. “Passione”, de Sílvio de Abreu, que estreou na semana passada, também deve lançar tendências e cair na boca do povo. O autor busca se diferenciar no quesito linguagem agora, tentando fugir do estigma do “italianês” que costuma povoar as falas de personagens italianos.

A discussão sobre a língua sempre vem à tona quando os autores resolvem criar núcleos estrangeiros. Há quem opte por manter o português mesmo nos núcleos de línguas diferentes, como fez Glória Perez em “América”, por exemplo.

Outros, como Benedito Ruy Barbosa, priorizam a língua natal e adicionam uma pitada do jeito de falar, forçando um sotaque e adicionando uma ou outra palavra de fora. Assim, criou o “italianês” de “Esperança” e “Terra Nostra”.




Dessa vez, Sílvio de Abreu está tentando adotar uma linha diferente e manter, o máximo possível, à fidelidade ao italiano dos personagens que vivem em Toscana. Veja também, ao longo do texto, alguns links de sugestões para não fazer feio no idioma.

“Por um lado não poderia escrever em italiano porque o nosso público no Brasil não entenderia, mas também não queria escrever em português como se fosse italiano porque perderia o que há de melhor na Itália –a música de sua língua e o espírito. Então, criamos uma maneira para alcançar o que queríamos: primeiro escrevi os diálogos da família italiana em italiano. Em seguida, eles passaram pela consultoria da Cecília Casini, professora da USP, assim como o ensaio com os atores.”

Depois, junto com Cecília, o autor fez alterações no texto. “Tirei as palavras que tinham outro significado no Brasil –por exemplo, ‘prego’ que lá quer dizer ‘por favor’ e aqui quer dizer ‘prego’– para não confundir a cabeça do público. Depois que os atores pegaram a música da fala e incorporaram o espírito italiano, substituímos muitas palavras por sinônimos que tivessem o mesmo sentido no Brasil.”

Com isso, em vez de ouvir “prego”, os telespectadores vão escutar um “per favore”, que tem o mesmo significado. “Sei que isso vai fazer com que os puristas achem que não estamos sendo fiéis, mas o que interessa é o espírito da novela. Não vou deixar de usar a música napolitana ou elementos interessantes de Roma porque estamos na Toscana. A família Mattoli é da Toscana, mas é uma família que mistura romano com toscano, com napolitano.”

Outro artifício usado no processo de construção dos diálogos italianos foi diminuir as frases, de acordo com a consultora. “Quando julgou-se que a compreensão não ficaria comprometida, optou-se por manter e pronunciar algumas frases ou expressões particulares, geralmente curtas, quase inteiramente em italiano, para passar uma ideia de maior autenticidade dos personagens italianos da novela.”

Também foi necessário fazer outras adaptações. “Em certos casos, palavras e expressões, iguais ou muito parecidas entre italiano e português, foram selecionadas e misturadas nas frases. Em outros, palavras portuguesas forma ‘italianizadas’ –por exemplo, reduzindo a nasalização, ou mudando sua terminação. Também, foi alterada a ordem dos elementos de uma frase conforme a sintaxe do italiano, mas mantendo as palavras portuguesas, como no caso da posição dos advérbios de frequência e dos pronomes.”

De todas essas operações resultou uma língua híbrida, uma mistura entre italiano e português, mas baseada em critérios precisos e com formas recorrentes e reconhecíveis.

“Acho que a maior dificuldade para os atores foi conseguir automatizar essa língua, como se fosse o seu próprio idioma, para que soasse natural em sua boca. Também foi difícil para eles pronunciar certas letras, que, embora se escrevam da mesma forma em italiano e em português, podem se pronunciar diferentemente.”
Segundo Cecília, algumas palavras italianas não puderam ser inseridas, pois são tão diferentes das equivalentes em português que não seriam entendidas. É o caso de “più”, que quer dizer “mais”, e outras cuja utilização foi cuidadosa, pois gerariam confusão devido à semelhança formal com palavras do português, porém de significado diferente, como “mai”, que significa “nunca”, mas que se parece com “mais”.

A consultora lembra que, além de novelas como “O rei do gado” e “Esperança”, o italiano e sua maneira peculiar de falar aparece com regularidade na cultura brasileira: nos contos do clássico “Brás, Bixiga e Barra Funda”, de Antônio de Alcântara Machado; no teatro de Abílio Pereira de Almeida; na experiência dos diretores italianos do TBC; nos filmes da Vera Cruz; no repertório da “comédia de costumes ítalo-brasileira”, de Nino Nello; no samba paulista de Adoniran Barbosa; no cinema do carcamano Mazzaropi; na sofisticada paródia lingüística de Juó Bananére”, inventor, na década de 30, de um famoso “linguajar” italo-paolista etc. “Eu me inspirei também nessas experiências para compor a língua da novela.”

A preocupação foi com a língua de forma geral, não com aspectos de pronúncia regionais, que tornariam a compreensão mais difícil “Mesmo assim, de vez em quando, eu coloquei algumas palavras típicas da Toscana, como “babbo”, “figliolo”,” nulla”, “bischero”, “grullo” etc, só para caracterizar melhor as personagens.